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I

  Por fim, chegou só mais uma noite E nem a noite me chegou Precisava de fugir nos sonhos Em busca Na busca   E a noite chegou por fim Os olhos ardem E arde de febre Dentro o ventre A garganta seca Arranham-me palavras presas   Só encontra que sabe o que procura E eu só me queixo do que encontrei Lúcia

Dança da chuva

  Tenho saudades da chuva que corria nos beirais Das noites de chuva húmidas Onde a solidão esbatia nas vidraças outros ais   Estou tentada a beber a nossa garrafa Num copo grande com muito gelo Ao invés faço a mezinha de ervas que me ajuda a dormir   Ainda não sei porque se foi a tua voz Nem porque deixei de me ouvir Talvez tenha chegado a hora de partir E de cortar os cabelos… Ou, por fim, soltá-los deixar crescê-los Como nunca fiz Tenho saudades e nunca e nada me faz quase feliz   Tenho saudades da nossa chuva que corria nos beirais E um dia qualquer sem caminho sem destino Sentir a chuva bater na vidraça devagarinho   Tenho saudades da nossa noite sem nós Aquela em que nunca nos encontramos nem dormimos juntos Tenho saudades da nossa história mal escrita e que a chuva levou a tinta Das palavras que a pena beijou no papel Tenho saudades de dedos finos e fios de cabelos Nos meus, olhados contra a ténue luz e das velas que nunca

Caminhos de lama

 Os caminhos de lama não nos sujam, mas prendem-nos como ventosas a um útero térreo. Como se fossemos engolidos por mil vaginas moles, vaginas escuras, vaginas amareladas, tufosas e ou depiladas... esta noite resvalei em lama num caminho por onde não queria ir senti que me enterrava que a onda eminente me podia levar e eu não consegui sair esta noite perdi-me nos bibelôs da minha mãe algures na casa da minha avó havia aquela voz proeminente que me feria o cérebro havia uma vontade de fugir de seguir o meu caminho de procurar a minha luz e depois aparecias tu, deformada no corpo deformada na alma, uma alma envenenada de açúcar e de tormentos possuída pela falta de vontade de crescer procuravas confundida o corpo do pai e da mãe para voltares a não ser e eu puxava-te para um caminho e eu puxava-te para longe dos petit gateau húmidos e putrefactos para longe das lama-vulvas prontas a engolir-te os caminhos de lama não me sujam, sugam-me. Lúcia Cunha

e se eu partir?

e se eu partir? e se eu partir agora? Se eu partir agora como se parte em viagem e como partia assim de repente sozinha sem avisar a gente... já que não posso ir... posso ainda e tenho a liberdade de partir eu já senti que podia ter partido ocasião que desgostei... mas agora... agora já nem sei... e se partir? podias dormir meu amor dormir de noite como o hibisco e se partir? Lúcia Cunha

cardo

meu pequeno cardo de flor laranja oxalá te pudesse levar pelos recantos do meu jardim tudo deve ser em ti de bom fundo nada que me preste ainda admiração terei que saber beber dos teus espinhos flores gotas de orvalho ah se soubesses como são mais espinhoso meus pés das calçadas que me ferem não venhas por aqui meu bom cardo meu pequenino pezinho de boa vontade procura estepes áridas são mais doces que este caminho Lúcia Cunha

Fluxível

Lamento se não for isso que procuro. Lamento. Brando ,  frouxo ,  flácido                           fluxível perdemos algures a paixão nos nossos olhos lembraste quando foi? meu amor morre-me as garças no ninho                             e eu choro porque me parece tudo tão Brando ,  frouxo ,  flácido                           fluxível onde corre a égua de crina negra? ah vazio Brando ,  frouxo ,  flácido                           fluxível! tão brando! tão fouxo! TÃO FLÁCIO! onde anda o meu teso povo teso onde anda a Fala? A tua Fala vigorosa?! onde anda? Brando ,  frouxo ,  flácido                           fluxível essa luta não foi um coito fluxível, tocha extinguível onde anda a busca o debate a demanda derradeira centelha da minha lucerna e o inexorável era só argalho Lúcia Cunha                          

seca

o verão secou-me no corpo como o trigo seco só e morto avistei porém em qualquer sítio muito além vislumbres de alguém, nada mais que fogo fátuo seca a terra levanta cinza pó acre e cal agarram-se a mim secos tojos cujos picos nas carnes já não fazem mal quem quando me levou a voz ensurdeci-me e não me lembro muito doce me assemelha e pareça quase aragem, é só bafo podre afável mofeta misericordioso ardor nos brônquios me consome até aos alvéolos derradeiro fulgor de vida que me queima que arde que me mata a mata só cinza acre Lúcia Cunha